Texto: professor Clóvis Da Rolt
Obra de Voluspa Jarpa integrante da 8ª Bienal do Mercosul
Sob o slogan “Ensaios de Geopoética”, a Bienal de Artes Visuais do Mercosul retorna à capital gaúcha. Desde 1997, com suas intermitências bianuais, o evento vem explorando sua posição frente ao conturbado cenário das artes visuais contemporâneas.
Junto a outras Bienais que acontecem ao redor do mundo, cada qual buscando suas estratégias de afirmação, a Bienal do Mercosul – com suas intenções quase proféticas –, parece criar uma atmosfera de revelação estética que preenche vazios, costura memórias dissociadas, constrói significados e anuncia que já não somos uma soma de gentios colonizados. Sim, a Bienal do Mercosul traz consigo uma grandiloquência pretensiosa presente na maioria das coisas que se diz sobre a arte, este fenômeno geralmente elevado à categoria do intangível e de algo que foge à igualmente pretensiosa exatidão dos conceitos.
A arte nos ensina que é preciso ir além do ensaio, é preciso buscar a forma. E mais: é preciso que a linguagem engravide a forma, caso contrário não há arte, apenas o ensaio, o gesto, as tangências. Sem entrar nas questões implicadas nesta afirmação, sugiro que a Bienal do Mercosul carrega em si uma forma dupla: por um lado refiro-me à forma estrita e inerente à arte (mais estritamente às obras “em si”) e à sua maneira específica de comunicar e estimular diversas leituras; por outro lado, refiro-me à forma que modela a grande Mostra gaúcha no que se refere à sua aparição social. Isso quer dizer que a Bienal não é só uma ideia, um inofensivo e extravagante relâmpago cultural bianual, mas um contexto vivo onde poderosas lógicas sociais atuam de modo a revelar que a arte também pode ser compreendida como um uso.
Algumas pessoas vão a museus de arte, visitam exposições, adquirem obras em leilões, interessam-se pela leitura de biografias de artistas, financiam instituições culturais e organizam coleções particulares; outras tantas passam a vida inteira sem jamais terem contato com tais esferas culturais da sociedade. O que as divide? O que as diferencia? Por que, para algumas pessoas, a arte ocupa um lugar central em suas vidas, enquanto para outras ela não passa de mero acessório, futilidade ou algo que não desperta qualquer interesse? As disparidades e os desníveis verificados no campo da arte estão também presentes em outros campos que constituem a vida social. Isso se deve, em grande parte, às clivagens e às estratificações presentes no âmbito da vida coletiva, as quais definem modos e estilos de vida, práticas de consumo cultural, bem como articulam as facilidades ou dificuldades de ingresso nas esferas consideradas “legítimas” à assimilação dos códigos estéticos de um determinado contexto histórico.
Uma Bienal de arte não é um evento que serve apenas para “mostrar obras de arte”. Ela informa as transformações que vão ocorrendo no campo artístico num desdobramento que se ramifica para diversos campos, como o econômico, o político, o ideológico e o cultural. Dentre uma série de ações desencadeadas, modeladas ou induzidas por uma Bienal está o desenvolvimento de formas variadas de sociabilidade em seus espaços expositivos, algo que explorei mais detalhadamente numa pesquisa recente. Além disso, o evento constitui uma soma de práticas que, aparentemente, em nada vinculam-se à arte, mas que, numa leitura mais apurada, interferem profundamente no modo como nos relacionamos com ela. Isso é simples de ser compreendido, por exemplo, quando nos reportamos ao orçamento estipulado para um evento desta natureza. Um orçamento de vinte milhões de reais produziria um determinado perfil estético para a Bienal que um orçamento mais modesto não produziria. Outro exemplo: a escolha de uma equipe curatorial desencadeia um complexo processo de decisões, envoltas em vaidades pessoais, jogos de poder e manejo de influências. E isso é crucial para determinar o que vemos (e o que não vemos) numa Bienal.
A arte é também um uso. Este é um dos temores dos que investem em seu caráter transcendente e descolado da realidade, impondo-lhe a condição de refém de discursos esotéricos, dos quais só os “iniciados” podem participar. De fato, a arte é tão poliédrica e abrangente que pode encaixar-se em qualquer discurso, mas parece ter uma vinculação especial àqueles ligados aos idealismos, às mistificações e aos intelectualismos, como se apenas um grupo muito raro e especial de pessoas estivesse a ela conectado por uma determinação natural, à qual poderíamos nos referir, ironicamente, como “evolucionismo estético”. Entretanto, percebendo-a como um uso é possível verificar como são profundamente maleáveis os valores que atribuímos à arte, especialmente no contexto de uma Bienal, que, em sua aparição como evento cultural, deixa rastros do arranjo cooperativo de tarefas que fazem com que ela exista de uma forma socialmente objetiva.
Deste modo, dentre uma série de outros agenciamentos possíveis e não mencionados aqui, a Bienal tece seu fio na imbricada trama política que liga o Estado e as empresas privadas que lhe amparam financeiramente através de benefícios fiscais; oferece oportunidades de trabalho permanente ou temporário para diversos funcionários; diferencia culturalmente a cidade que a sedia; consagra artistas, constrói e destrói reputações entre agentes do campo artístico; orienta práticas de classificação de artistas e obras; amplia as possibilidades de reprodução de uma tecnologia do gosto através da ação de museógrafos e profissionais de expografia; atua na formação pedagógica do grande público, ainda considerado despreparado para este tipo de opção cultural; constitui uma alternativa de lazer para os que já enjoaram de shopping centers e jardins zoológicos; gera pautas e editoriais em veículos de mídia especializados; integra pacotes turísticos dispostos a comercializar a experiência de visitação às exposições; explora comercialmente sua marca e sua identidade, negociando-as como moeda de troca simbólica.
A arte é visivelmente permeável às ações humanas à sua volta. Não há dúvidas de que ela não é uma atividade isenta de conflitos, ingênua ou que serve apenas para cadenciar as vicissitudes de sujeitos gauches e alienados, como muitas pessoas podem pensar. Como um território da arte, a Bienal apresenta um enredo de relações construídas em âmbitos que podem não ter qualquer ligação com o mundo da arte, mas que participam da configuração de complexas forças sociais diluídas entre o que vemos e o que não vemos.
Isolada num determinado ambiente e vedada contra a infiltração dos sentidos humanos, a arte converte-se num refém silencioso. Contudo, quando presente num circuito de relações humanas como uma Bienal, ela alcança um estatuto social diferenciado, por meio do qual temos acesso a uma série de questões que lhe são subjacentes: ideologias, lutas por monopólios, desníveis de classe, representações coletivas, marcações simbólicas, confrontos políticos etc.
A conhecida sentença de Ortega Y Gasset diz que “eu sou eu e minha circunstância”. Há uma relação profunda entre o que eu penso que sou e a circunstância que me modela. Cientes de uma possível deturpação da ideia original do autor, talvez possamos aplicar a mesma conexão entre “ser” e “circunstância” para tentarmos alguma visibilidade sobre a arte, este fenômeno complexo e historicamente mutável que nos desafia. Tal orientação poderia nos mostrar que a arte estabelece uma relação umbilical com tudo que está à sua volta, mediante um jogo de distanciamentos e aproximações.
Se todos os seus sentidos estiverem bem calibrados e afinados, será possível para qualquer visitante da Bienal do Mercosul perceber a circunstância como um elemento importante para o entendimento das obras ali apresentadas. Vale lembrar que, para Ortega Y Gasset, a conexão é dramática e radical, pois expressa dois momentos únicos. Portanto, cabe a cada um vivenciá-la com toda a sua carga de risco e incerteza.
Publicado no Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora, em 29/10/2011
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